“Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São estas as coisas que contaminam o homem.”
(Mt 15.19-20a).
No início de 2006 comprei o DVD do filme “A Lista de Schindler”. Estava desejoso de rever desde que assisti em um cinema em Manaus, no distante ano de 1994. Assisti a este filme uma única vez e nunca esqueci das várias cenas fortes dos campos de concentração nazista e da luta de um homem ganancioso, porém consciencioso, em tentar manter vivos perto de mil e duzentos judeus. A história é conhecida, e estou certo que a grande maioria já o assistiu.
Quando saiu a versão em DVD (quem ainda compra DVD hoje?), com excelentes extras, o adquiri com a certeza de estar levando algo que valia bem mais que o preço estabelecido. Apesar da alegria em ter em mãos o DVD para assistir a qualquer momento, este permaneceu completamente intocado em nossa pequena dvdoteca, em sua embalagem original. Me consolava com a ideia que estava meio que à espera do momento certo.
Qual minha surpresa ao perceber uma pequena luta interior para assisti-lo novamente. Protelei o quanto pude. Por vezes dizia que não tinha tempo para assisti-lo (mas quantos filmes não assisti desde então?). Outras vezes me consolava a ideia que seria melhor assistido na presença de vários amigos, mas nunca convidei ninguém para assistir comigo. Por vezes, nos momentos em que o DVD me olhava sutilmente da prateleira, embaixo da TV, o repreendia gentilmente dizendo que minhas filhinhas estavam presentes, e suas cenas eram demasiado fortes para seus ingênuos corações. Atrocidades desse nível requerem mentes mais calejadas com os sofrimentos, labores e misérias desta vida. E assim fui adiando, procrastinando. Sempre uma desculpa, um compromisso, uma preocupação.
Confesso que me irritava minha clara tentativa em sabotar minha própria sessão particular de cinema. Algumas vezes tentei encontrar uma razão para meu comportamento. Racionalizava tentando me convencer que o filme era por demais triste e depressivo e por isso acabava adiando. Lá no fundo sabia que a verdade era um pouco mais profunda e amarga que esta justa justificativa. O DVD ficou intocado até o dia primeiro de setembro de 2007, um pouco mais de um ano e meio depois da compra. Nessa época morava em Porto Alegre RS.
Neste dia, perto das 19h, minha irmã ligou de Manaus. Aflita informou-me que meu quase cunhado (hoje seu marido, e que estava terminando seu doutorado em Porto Alegre) pode ter sofrido um infarto, mas não sabia onde estava e nem sua condição de saúde. Liguei para vários hospitais e descobri que dera entrada pela manhã no HPS, mas fora liberado à tardinha. Ninguém soube informar seu quadro, nem para onde havia ido. Aprontei-me para ir a seu apartamento, e se necessário arrombar a porta. A caminho chegou-me a notícia que de fato houve um infarto e o mesmo se encontrava internado, dessa vez no Instituto de Cardiologia. Uma porta foi salva, mas não um coração aflito. Dirigi-me para lá, e consegui que me deixassem entrar na CTI na condição de parente mais próximo (possível futuro cunhado é parente), uma vez que ele morava só e toda sua família estava em Manaus.
Na CTI encontrei um rapaz relativamente jovem, e em excelentes condições físicas, no quadro de recém-enfartado. Estava deitado, fraco pela angioplastia, mas lúcido. Converso, animo, oro e vou-me embora, evitando olhar as inúmeras pessoas em seus leitos ultra-modernos, mas de condições delicadas e rostos tristes. A CTI, ainda que altamente tecnológica e asséptica, de alguma forma me passou a atmosfera de um campo de refugiados, e isso me incomodou. Lembrei-me da Lista de Schindler, e isso me angustiou. À noite retirei o DVD da estante e o deixei em cima da TV.
No dia seguinte, após visitar o quase-ex-futuro-cunhado no hospital, e certificar que seu quadro, ainda que delicado, estava estabilizado, voltei para casa e retirei o DVD de sua caixa, me propondo a assistir. Era início da tarde, e estava um friozinho agradável. As meninas estavam descansando junto com a mãe e não acordariam antes das seis da tarde. No final da tardinha minha esposa encontrou-me encolhido no sofá, com as mãos crispadas sobre o peito, olhos fixos nas imagens que passavam na tela, uma face aterrorizada e abundante de lágrimas a escorrer. Eu descobrira o motivo de tanto procrastinar e lembrara o que tanto me incomodava na Lista de Schindler.
Minhas lágrimas não eram devidas, em sua maior parte, ao imensurável e vergonhoso sofrimento experimentado pelos judeus. O sofrimento daquele povo, superficialmente mostrado no filme – pois certamente a realidade foi muito pior que o retratado, como mostravam os testemunhos reais nos extras do DVD - ainda que digno de toda lamentação, jazia no passado. Muitas vezes lágrimas vertidas pelo simples choque de imagens podem apontar para um sentimento piegas de pena, que nem sempre é saudável e não leva a reflexão séria dos fatos.
As lágrimas vinham da forte percepção que os homens que realizaram tamanhas e perversas atrocidades não eram diferentes de mim, exceto pelo fato de terem vivido noutra época, sob uma ideologia racista e preconceituosa. Aquelas imagens gritavam à minha mente “Esta é a humanidade, sem limites, sem freios, em toda sua crueldade. Eu faço parte dela”. Chorava não só pelos judeus, mas por mim, porque em meu coração vislumbrava todo o potencial para aquela maldade. Doeu na alma.
Muitos anos atrás um jovem rabino judeu, um Homem como nenhum outro, afirmou categoricamente que todo mal, todo pecado, toda iniquidade, tem sua origem no coração humano. Toda a crueldade e loucura testemunhada pela história humana confirmam taxativa e reiteradamente suas palavras. Qualquer um, sincero o suficiente para consigo mesmo, poderá confirmar essa triste verdade ao confrontar a origem dos seus desejos mais intensos com o padrão de retidão moral. A lista de sempre: malícias, ódios, infidelidades, lascívias, abandonos conjugais, cobiças, mentiras, blasfêmias, preconceitos, egolatria, etc. Uma sucessão de erros, cobiças sem fim e franca iniquidade é o que povoa nosso coração. Aqueles nazistas, sob o comando de um homem perverso e iníquo, apenas deram um pouco mais de vazão ao que estava em seus corações. Se não agimos da mesma forma, não é porque somos melhores, mas porque há situações limitantes que nos guardam de cometer todo o mal pelo qual anseia nossos corações. Livres destas correntes sócio-culturais cometeríamos barbaridades, tão ou pior, que as registradas na segunda guerra.
Assisti a Lista de Schindler e vi um pouco da maldade do coração humano retratado naquelas cenas. Vi também um pouco de meu coração, chorei e me amargurei ao constatar, mais uma vez, o quanto é mau meu próprio coração. Não foi uma imagem muito agradável, nunca o é, mas fez bem este confronto e me mostrou meu demérito e a necessidade que tenho da Graça de Cristo. Não foram lágrimas que aliviaram a alma, antes tornaram pesado o peito com o quadro de depravação moral humana, pois ela começa em mim, em meu íntimo. E nessa tristeza pude me lembrar da única esperança e remédio para este peso que sobrecarrega a alma: o gentil convite do meu Senhor “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei.” (Mt 11.28).
Que a Ele se dirijam todos que vislumbram a vileza de seus corações e buscam uma cura. Amém e amém!
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL DE APOIO
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Kelson Mota T Oliveira
Palestrante, professor, pregador, escritor com 2 livros publicados.
Responsável por um programa na ConstantTV sobre fé e ciência.
É casado e tem duas filhas alegres e curiosas.
Doutor em Físico-Química pela IQSC-USP, na área de Química Teórica/Mecânica Quântica Molecular.
Desde 1992 é professor de carreira (GQTC-UFAM/CNPq).
Atual vice-presidente da Sociedade Brasileira de Design Inteligente (TDI-Brasil).
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